Foi no tempo do cair da folha. Sol ainda brilhante, interrompido aqui e ali por pequenas nuvens ingénuas que faziam quebrar a monotonia da paisagem.
Ela vinha empinada em cima daqueles saltos altíssimos, pontiagudos, que lhe davam um ar titubeante de lavandisca, em requebros de ancas, entre o lascivo e a falta de equilibrio, que a todo o momento podia dobrar e partir-se pela cintura. Beiços pintados, cantos da boca babados, insinuando coisas e situações. Seios (demasiado) apertados por armação forte, que os empurrava dos sovacos contra o centro do peito, assim com duas mãos em ânsias, provocando um sulco denso, central, prometedor, desvendado pelo pelo decote abundante. Ancas, coxas, pernas visíveis ou adivinháveis, em contornos redondos, talvez excessivos.
Ele, olhando-a, pensou: - Vale a pena viver.
E ela seguia, vista de frente, vista de lado, vista por detrás, vista e revista. E apetecida.
Ele, olhando sempre, enquanto ela passava, sentiu como que um aperto na garganta, um mau agouro no peito, uma afronta, qualquer coisa que lhe arrepanhava o peito por dentro, um barulho doudo dentro dos ouvidos, ao mesmo tempo que ouviu uma gargalhada que fazia caçoada das flostrias dela, ao passar:
- Olha a galdéria!
Foi quando ele sentiu que, por qualquer causa, motivo ou razão o corpo não estava a conseguir reter-lhe a alma. Estava a esvair-se-lhe por uma infinidade de poros e a elevar-se lentamente, lentamente, acabando por ir encostar-se no buraco do ozono, tentando passar mais além. O corpo ficou caído, inerte, em posição desconchavada. A cabeça, ridícula, meia de lado e inclinada para trás. Braços e pernas em meneio estúpido, que nunca tinha tido.
Chegou um outro e disse:- Está morto.
E vai ele pensou:- Ah! Então morto é isto.
Tentou virar a cabeça para aquele que o sentenciara de morto. Não conseguiu. Tentou endireitar as biqueiras dos sapatos e corrigir a posição ridicula das pernas. Não conseguiu. Tentou levar a mão à cara, limpar a baba da boca. Não conseguiu. Desistiu. Aceitou. Estava morto. Tentou, então, recordar a frase que tinha escrito, ao principio da tarde, na agenda de bolso, mas não conseguiu. E era importante. Era, talvez, importanta nestas circunstâncias. Era importante, mas não sabia porquê. Tinha qualquer coisa a var com isto. Com esta situação de estar morto e assim desta maneira. Viu, então, pelo canto do olho esquerdo, o sulco dos seios dela a aproximar-se, enquanto a mão direita lhe palpava o pescoço.
- Está vivo! Está vivo! Tem pulsação. Fraca, mas tem pulsação.
Ele, com o olhos fixos, via-lhe mais o pescoço que os seios, mas adivinhava-os.
- Tem pulsação, sim senhor. E está a bater cada vez mais forte. Será catalepsia?
- Qualquer coisa pode ser, senhora. O homem fica é abafado. Deitada como está assim em cima dele ou abafa ou ressuscita.
- Chamem os bombeiros! - berrava um passante.
- Não é preciso. Chamem a Polícia. A Esquadra é já ali.
- A Polícia é para quê?
- A Polícia chama a ambulância, senhora.
Ela batia-lhe com ambas as mãos nas faces.
- Ai querido, acorde, acorde.
- Pois, bata-lhe. Ele ficou assim quando a viu paaasar nesse propósito. Olhou para si e passou-se.
Ela não ouvia. Ajoelhsda no chão, aflita, ora lhe palpa o pulso ora o pescoço, ora lhe dava bofetadas.
Passou um padre idoso e ficou comovido com a cena. Conferiu a falta de alianças nas mãos de ambos.
- São namorados, pois?
Como nenhum dos presentes respondesse, fez sobre eles o sinal de benção e declarou-os matrimoniados "in articulo mortis". Afastou-se sem mais, de mãos postas, rezando um responso entre dentes.
Chegou a ambulância, que levou os dois. Ele deitado, ela debruçada sobre ele, insuflando-lhe vida e força.
Tudo isto se passou há mais de vinte anos e continuam juntos.
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