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12 de agosto de 2011

MELHOR SERIA AMEAÇAR MORRER




Pouco tempo depois de o casal recém-casado ter ido habitar o andar de cima, o Abreu e a mulher, que moravam no quarto esquerdo, decidiram passar a dormir no outro quarto, que fora do filho.
O quinto esquerdo estivera desabitado durante uma meia dúzia de anos, depois da morte da D. Ludovina.
Souberam da venda do andar de cima quando começaram as obras. Foi um sofrimento horrível. O barulho de berbequins, marteladas e outros durante mais de um mês e a qualquer hora. Para não falar do intenso cheiro a verniz que se instalou nas escadas e se introduziu por debaixo das portas durante quase uma semana.
No entanto, não foram essas as razões pelas quais os Abreu decidiram mudar a cama de casal para o antigo quarto do filho. Foi depois de o novo casal (recem-casado), do quinto esquerdo, se ter instalado. O casal Abreu e os restantes moradores do prédio agradeceram a Deus ter acabado a era do berbequim, do escopro e do martelo, quando viram chegar o carro de caixa fechada com o recheio a instalar na casa. Voltou, assim, o socego diurno a todo o prédio. Mas, para os Abreu, acabou o socego nocturno.
Acabada a novela televisiva, aí pelas onze horas, onze e um quarto da noite, o casal Abreu recolhia aos seus aposentos.
O marido Abreu tinha o sono muito leve. Passou a ser acordado por "ais" e queixumes a meio da noite, que continuavam em crescendo e se arrastavam por bastante tempo.
Da primeira vez acordou aflito. Olhou a mulher, que dormia. Ficou preocupado, com o coração aos pulos dentro do peito. Foi até à porta de entrada e os ais continuavam, embora menos audíveis.
- É alguém que se está a sentir mal - pensou.
Foi até à sala. Não se ouvia nada. Voltou à porta do quarto e já se ouviam, de novo. Abriu a porta da casa e foi até ao patamar da escada. Nada. Voltou ao quarto. A mulher dormia. Os ais iam agora aumentando de intensidade e subiram tanto, que percebeu, perfeitamente, que era uma mulher que se queixava e que os "ais" vinham do andar de cima. E, de repente, ouviu-se perfeitamente uma voz de mulher: - Ai que eu morro! Ai que eu morro!
A mulher do Abreu acordou assustada. Acendeu a luz e viu o homem, em pé, aos pés da cama, com o cabelo desgrenhado e em tronco nu.
- Que foi? Que é? Estás mal disposto?
Em cima o drama continuava: Ai...ai...ai que eu morro!!!
Os queixumes acabaram de repente com um ai mais grave e gutural.
Foi, portanto, esta a razão continuada e quase diária que causou a mudança dos Abreu para o antigo quarto do filho, embora a cama-de-casal ficasse muito apertada e só houvesse espaço para uma mesa de cabeceira. Ora, isto causava muito transtorno à D. Ermelinda Abreu, porque não tinha onde colocar o copo coma dentadura.
A mudança não foi imediata. Tomou seu tempo. É que, em princípio só se ouviam ameaças de morrer aí pela meia-noite, meia-noite e meia, mas, depois, as ameaças surgiam, também, pelas três, quatro horas da manhã. E as ameaças eram de tal ordem, que o marido Abreu, um dia, ensonado e furibundo, berrou para cima: - Morra depressa, que eu quero dormir!

Mas, não se pense que o sofrimento do casal Abreu acabou com a mudança de quarto. O relativo socego durou, mais ou menos, uns quatro anos. Não, não foi com o simples facto de ter nascido um bébé no andar de cima. O choro da criança, mesmo durante a noite, até lhes era agradável. Lembrava-lhes o filho ou o desejo de netos, que nunca mais vinham.
É claro que também os incomodava os sons do aparelho de televisão na sala, em cima, paredes-meias com o quarto onde dormiam. Mas eram toleráveis. Também os ruídos causados pelos brinquedos da criança, manhã cedo, no chão do quarto de cima, não os incomodava, porque a essa hora já estavam despertos.
O incómodo, agora, acontecia, sempre que o pai da criança chegava tarde a casa. A mãe ficava na sala vendo televisão pela noite dentro. A criança também não dormia e, no quarto, deitada na cama, cantarolava:
- Atirei c'o pau ao gato...
Até este momento os Abreu quase nada ouviam, mas logo a seguir:
- CALA-TE, JOÃOZINHO !!! - berrava a mãe, acentuando o agudo do "i", como nos tempos em que ameaçava morrer.
- ...não moleu, eu, eu...
- JOÃOZINHO!!!
- Miau!
- JOÃOZINHO!! ESTÁS A INCOMODAR OS VIZINHOS!
O Abreu, desesperado, sentado na cama, dizia baixinho, para não acordar a mulher:
- Porque é que esta gaja não deixa o miúdo cantar e vai morrer para o quarto dela?

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