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19 de junho de 2011

UMA ESTRADA DENTRO DE CASA?

Ao chegar a casa entrou no quarto e viu que tinham construido uma estrada que lhe passava mesmo por baixo da cama.
A estrada entrava entre os pés da cama e saía, mais ou menos a meio, do lado direito... para quem esteja deitado de costas.
Para poder sair da cama, se não tomasse os devidos cuidados, cortaria o tráfego nas duas vias. Claro que tinha possibilidade de colocar um só pé no chão e, à custa de voltas e contorcionismos, amparando-se na cabeceira, podia colocar o outro pé para além da outra berma da estrada. Mesmo assim podia afectar o normal fluir do tráfego. Concluiu que a melhor solução seria pular de cima da cama para a berma da estrada do outro lado.

Assim estava pensando, acabado de chegar de uma viagem de férias no estrangeiro, sentado numa cadeira junto à cama, ainda com a mala a seu lado.

Mas que ideia tão estúpida construirem uma estrada dentro de uma casa de habitação, invadindo propriedade privada, sem expropriação prévia e... passando por baixo da cama de um cidadão!

Abriu a janela para verificar se havia alguma ponte, viaduto, estrutura superior para acesso ao terceiro andar. Nada. A estrada tinha sido construida pelo interior da própria parede, rompendo o rodapé, atravessando o quarto e saindo por rodapé oposto, onde tinha sido aberto um túnel. Baixou-se e espreitou pelo túnel. Estava escuro. Nada se via, mas as viaturas circulavam.
- Passará para a casa do vizinho através da parede comum? - pensou. E se batesse à porta do vizinho e perguntasse? E se não há estrada na casa do vizinho? Vai pensar que estou maluco e fecha-me a porta na cara. E se telefonasse para a Câmara, perguntando quem licenciou a obra?
Nossa Senhora! Ele que tinha vendido o outro andar, herdado dos pais, por causado barulho da vizinhança e, agora, uma estrada em casa! Bem, vendo bem, fora melhor assim do que terem arrasado o prédio na sua ausência.
Colocou-se de cócoras para ver passar o tráfego, adivinhando, dentro das viaturas, as cabeças dos condutores. Estranho, muito estranho, só havia condutores, não transportavam mais ninguém. Só os condutores...

Sentia-se impotente para encontrar uma solução. Deveria haver maneira de convencer alguém, com poderes, para desviar a estrada. Se podia vir de dentro de uma parede e, depois, voltar para dentro de outra parede, podia ser corrigida, por exemplo, continuando sempre dentro das paredes. Além disso não se ouviria o ruído dos motores. Então o túvel podia ser tapado, por inútil. E inestético.
Estava assim a pensar, quando lhe ocorreu que podia telefonar para o administrador do condomínio. Devia-lhe uma explicação. Que estupidez! Era a primeira coisa que devia ter feito.
- Estará em casa a esta hora?
Puxou do telefone na cabeceira. Marcou o número.
- Bom dia, sr. Cosme. Daqui fala o vizinho do terceiro esquerdo. Suponho que estará ao corrente da construção de uma estrada que atravessa o chão do meu quarto...
(Pausa).
- Sim. Por baixo da cama e...
(Pausa com irritação).
- Quem?! O quê?! Para arranjar o telhado? Podiam ter ido pelo quarto andar. Eu autorizei?... Por escrito?... Eu vou já aí falar consigo.
Poisou o telefone, irritado, mas, em vez disso, deu um murro na mesa de cabeceira com a mão entreaberta. ACORDOU e ficou deitado de costas, a afagar a mão dorida.
Acendeu a luz e olhou o despertador - quatro horas. Virou-se de lado e observou o carreiro de formigas que continuava a surgir de debaixo da cama, deixando uma leve sombra negra em movimento, a caminho do rodapé.
Apagou a luz e ficou a meditar no sonho, a analisar os pormenores e sorriu. Passou tempo, passou e... não tendo a noção exacta de quanto tempo teria passado, pareceu-lhe que o telefone tinha tocado. Deixou de tocar. Pouco depois voltou a tocar. Quando ia atender, parou de tocar. Voltou a tocar. Atendeu.
- Estou.
Estranhamente, o telefone continuava a tocar. Passou o telefone para a mão esquerda, mas deixou-o cair em cima da cama. Agarrou-o novamente com a mão direita.
- Estou.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Sr. António Filomeno?
- Sim, faz favor.
- Daqui é da Sociedadede de Advogados Barrando & Costa. Um momento. Vou passar ao Sr. Dr. Barrando.
- Está lá?
- Sim.
- Sr. Filomeno?
- Sim.
- Daqui é Jorge Barrando. Calculei que já tivesse regressado de férias. É para lhe dar conta das diligências que efectuámos junto do Ministério dos Transportes e Comunicações àcerca da estrada que construiram passando pela sua casa.
- Hum...?
- Sr. Filomeno, apesar de todo o empenho que colocámos neste assunto, não conseguimos obter uma solução tão rápida quanto seria desejável e a tempo do seu regresso de férias. Tenho, no entanto, a indicação de que o assunto foi já transferido para os Serviços de Urbanismo e Transportes da Câmara Municipal, que, ainda hoje, irão a sua casa fazer uma vistoria.
- Hum...?
- Peço desculpa, mas era o único dia que tinham disponível. Calculo que esteja cansado, mas não nos foi possível outra data.
- Hum...
- Esteja, portanto, atento, Sr. Filomeno e contacte-me depois ou quando entender necessário.
- Hum...
- Fico a aguardar a sua visita para apreciarmos a evolução do assunto. Bom dia.
Bom di...
Acordou assustado com a campainha-besouro da porta de casa, soando de forma contínua e irritante. Saltou da cama e, ao calçar os chinelos, esmagou dezenas de formigas. Tentava vestir roupão enquanto caminhava para a porta, tonto de sono. Tinha já formigas dentro dos chinelos que, subindo, subindo, lhe faziam cócegas nas pernas.
- Deve ser o pessoal da Câmara...
Abriu a porta e, espantado, viu o amigo Tito aos berros:
- Eu, lá em baixo, à espera, à espera...Não atendes os toques da porta da rua. Tens o telemóvel desligado e o fixo está impedido. Ainda vamos perder o avião! Dá cá a mala e os documentos, que eu vou andando. Despacha-te e chama um táxi.

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