Eram quase três horas da madrugada quando o Afonso entrou em casa já um pouco turvado pelo álcool e pelo sono. A manobra para parquear o carro no espaço exíguo da garagem tinha sido muito difícil.
Entrou em casa. Fechou a porta e encostou-se na parede da entrada, com os braços pendentes e a cabeça baixa. Sentia-se cansado, muito cansado, muito cansado.
"- Tenho que beber menos e dormir mais. E fazer algum exercício. Pelo menos nos fins-de-semana."
Sair só nas noites de sextas-feiras e sábados era uma seca - muita gente e demasiados cretinos por metro quadrado.
Encaminhou-se para a casa-de-banho. Olhou-se ao espelho.
Com dois dedos esticou as rugas das olheiras. Com a mão direita puxou para trás os cabelos da testa - o cabelo era cada vez menos. "- Estou a ficar velho."
Fechou os olhos e abriu-os logo a seguir. Parecia que aquela sua cara lhe era estranha. Não era ele. Era um semi-outro. Passou uma mão pela face. A barba estava já crescida. Continuou a observar-se ao espelho com uma expressão passiva, turvada, enjoada.
Abriu a boca e observou os dentes. Puxou da escova de dentes, colocou-lhe um pouco de pasta.
Quando ia começar a escovar os dentes ouviu umas gargalhadas agudas, minúsculas, irritantes. Voltou-se e viu um diabo pequenino, do tamanho de um rato, sentado na borda da banheira, que ria ria, ria, olhando-o. Reparou nos chifres minúsculos e nos pés de cabra. Irritado, atirou-lhe com a pasta de dentes, mas não conseguiu atingi-lo.
O diabinho escorregou pela banheira e fugiu pelo buraco de escoamento de água. O Afonso agarrou no tampão e tapou o buraco com violência.
Começava a escovar os dentes, quando outra gargalhada o fez voltar a olhar para a banheira. O diabinho, com o tampão pendurado de um chifre, fez uma vénia e, sempre a rir, voltou a desaparecer pelo buraco.
O Afonso ficou estático a olhar a banheira, com a escova de dentes na mão.
Retomou a lavagem e pensou:
" - Vou ter que comprar uma ratoeira e ver se consigo arranjar um pedaço de alma como isco para ver se o apanho."
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