Acontecia durante o entardecer. Nunca quando o sol estava em força, em dia pleno.
Na primeira vez apareceu como que uma substância leitosa, flutuante, que se aproximava e afastava lentamente, adejante, com contornos indefinidos. Fluia e refluia serenamente. Por cima dessa substância, bem por cima, parecia estar outra mais escura, ovalada, que tanto era notória como logo a seguir não era nada. Só uma ilusão. Essa forma, situada mais acima, oscilava como fumo batido por uma leve aragem. Para cima e para trás. Lentamente, lentamente e logo deixava de se ver.
Isto aconteceu umas quatro ou cinco vezes, num curto período.
Era tudo de tal modo ténue e impreciso que, quando era menos aparente e, finalmente, os olhos nada retinham, o Nuno ficava preocupado com a sua sanidade mental e com sérias dúvidas sobre se tinha visto alguma coisa ou só imaginado. Medo, medo, pensando bem, não tinha tido. Aconteceu, até, que, aí pela terceira vez, estendeu a mão tentando tocar-lhe e, imediatamente, tudo se extinguiu.
Só muito tempo depois lhe reapareceu no mesmo tom leitoso, suave, esfumado, mas, agora, mais azulado na parte superior. Tomava, também, um tom acastanhado, terroso, mais abaixo, próximo do soalho. Flutuava como anteriormente e, pela primeira vez, notou que não ocultava as formas dos objectos que estavam por detrás. Surgiu uma saliência comprida, talvez um braço, azul-acastanhada, mas não se vislumbrava a mão. Havia na extremidade dessa saliência uma forma cilindrica, mais notória que tudo o resto.
Ao mesmo tempo que esse "braço" começou a subir lentamente para posição horizontal e na sua direcção, o Nuno notou que pareciam tomar forma o tronco e a cabeça - uma forma ovalada - francamente azul, mas não se notavam olhos, nariz ou boca. O braço continuava a subir lentamente, lentamente na sua direcção.
A pouco e pouco, o Nuno passou a ver sombras mais escuras na zona dos olhos e da boca, que ia aumentando de tamanho, como se estivesse a tentar falar. O braço parou na posição horizontal, apontado a ele e tão próximo, que já conseguia identificar a mão, castanha, que segurava im objecto cilindrico, de cor mais clara. A boca, francamente aberta, assim como quem quer berrar, transmitia uma ansiedade imensa. Finalmente sentiu medo, quase terror e recuou dando um salto. Imediatamente tudo desapareceu.
- Estou a ficar maluco? Ando a dormir mal...
Passaram cerca de seis meses e nada mais aconteceu.
Numa manhã, ainda o sol não nascera, estava a fazer a barba, quando apareceu, no vão da porta da casa-de-banho primeiro a forma ovalada e azul da cabeça, depois os braços e o tronco castanho claro, flutuando no ar, sem pernas, fluindo e refluindo, aproximando-se e afastando-se. Nuno parou de se barbear e ficou a observar a figura, próxima, entre medo e espanto. O braço direito da figura começou a erguer-se na sua direcção, segurando qualquer coisa na mão. A forma da cabeça aproximava-se de si e a boca, totalmente aberta, parecia gritar ou querer gritar.
Procurou manter-se imóvel, apesar de ter todos os músculos tensos e os cabelos em pé.
O braço subia, subia na direcção do seu peito. A boca, escancarada e ansiosa, estava já muito próxima, mas sem emitir qualquer som. A mão, estendida, segurava uma folha de papel, acastanhada e desfeita, mais nítida somente na parte superior, onde estava escrito, em letras maiúsculas, enormes: TESTAMENTO.
Sem conseguir controlar a voz, gritou, entre pânico e espanto:
- NÃÃÃO!!!
O ser leitoso e azul-acastanhado desapareceu imediatamente, sem deixar qualquer indício.
Nuno recuou atabalhoadamente enquanto gritava e caiu para trás como se fosse um boneco articulado, ficando sentado na sanita. Apalermado, olhava o vazio.
Depois de recomposto e ainda sentado na sanita, questionou-se:
- Serei testamenteiro?
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