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20 de abril de 2011

FITAS

Foi há já bastante tempo, mas não no início do "sonoro". Foi muitos anos depois, mas, mesmo assim, faz muito tempo.

Daquilo que o pessoal gostava, gostava mesmo, era de "cobóiadas".
Havia,também, aqueles dramalhões, com touros e "malagueñas", que levavam as mulheres às lágrimas, mas disso a rapaziada não gostava.

À saída da escola, nas sextas-feiras à tarde, corriam para dar a espreitadela habitual às vitrinas do "CINEMA CENTRAL". Empurravam-se para poderem ver os cartazes com as fotografias dos actores, em cenas do filme, com aqueles nomes esquisitos, estrangeiros, ao lado das fotografias.

- Eu já vi este filme! Eu já vi es filme! O xerife, no fim, dá dois tiros no "bandido" e ele dá duas cambalhotas para trás e fica morto.
- Quem é o "artista"? Qual é o "artista"?

As personagens de cada fita eram sempre catalogadas e consideradas repetidas em todos os "filmes", apesar de as histórias poderem ser diferentes.
Havia sempre o "artista", o "bandido", a "gaja", o "pai da gaja", o "xerife" e, por vezes, o "ajudante do xerife".
O "xerife" era o que tinha a estrela maior ao peito e o "ajudante do xerife" o que tinha a estrela mais pequena. Estes dois quase não lhes levantavam dúvidas quando observavam os cartazes.
O "pai da gaja" era o mais velho e, além diso, exercia uma certa tutela e protecção da filha. Fácil de identificar era a "gaja", mesmo que houvesse outras mulheres, porque era mais bonita e porque as outras eram personagens femininas secundárias.
Difícil, isso sim, era muitas vezes distinguir o "bandido" do "artista", porque, nas fotografias, nem sempre o "bandido" tinha cara de bandido, assim como o "artista" nem sempre era o que tinha melhor aparência. Podia aparecer mal vestido, "négligé", cavaleiro solitário, com barba de vários dias, desiludido da vida. Só na fita se podia ver o seu profundo sentido de justiça. Ora, era aí que as fotografias enganavam. Por vezes fazia justiça pelas suas próprias mãos (ou seja, pelas suas próprias armas...).
Por outro lado, o "artista" convertia-se, muitas vezes em ajudante "de facto" do "xerife", sem delegação formal de poderes. Também podia acontecer que aceitasse que o "xerife" lhe pendurasse uma estrela no colete ou na camisa; ora isto aumentava mais a confusão na rapaziada quando viam as fografias - era o "artista" ou "ajudante do xerife"?

Havia personagens de segunda classe ou figurantes que conquistavam a simpatia. Simpatia ou gargalhadas de troça, como acontecia com o mexicano, sempre bêbado, a quem só aconteciam desgraças. Era facilmente identificado porque usava um grande bigode e um chapéu de grandes abas, cheio de flostrias.

Completada a procissão pelas montras e chegados a casa, era a grande tarefa de convencerem os pais a irem ao cinema no sábado à noite. Não podiam contar com a solidariedade das mães, que não apreciavam "cobóiadas".
Os bilhetes eram comprados no principio da tarde de Sábado e os preços eram como a seguir vai explicado:
- nas primeiras três filas pagava-se dois escudos e cinquenta centavos (assim dizendo, vinte e cinco tostões) por três lugares; cada lugar, para além desses três, custava mais cinco tostões cada um;
- para além das três primeiras filas, os lugares custavam todos cinco tostões cada um.

O porteiro não conseguia controlar as entradas com a diligência e prontidão que devia, porque a excitação da garotada era grande, porque era necessário cortar cada bilhete ao meio e, depois, entregar as metades aos adultos, acompanhando com a respectiva chapelada e esperar a gorgeta. Além disso, tinha que controlar o bando de rapazes e raparigas de "pé descalço", que forçavam a passagem entre as pessoas e as grades de ferro.

Iniciada a projecção, os gritos da garotada aumentavam cada vez mais e só diminuiam à medida que a história se ia desenvolvendo, implicando uma certa concentração para entendimento da trama.
Por vezes a fita partia-se. Acendiam-se algumas luzes e, na penumbra da sala, ouviam-se exclamações de desilusão. Eram, então, projectadas as seguintes palavras:

PEDIMOS DESCULPA PELA INTERRUPÇÃO

Passada uma eternidade, durante a qual era difícil controlar a criançada, era, de repente, retomada a projecção, sem aviso prévio e ouviam-se exclamações de alegria na sala. Voltava a festa, como se nada tivesse acontecido.

Habitualmente, o "artista", apesar de evitar meter-se em complicações na sua passagem pela "cidade", via-se envolvido nos sarilhos locais, e ter que enfrentar o "bandido" e eliminá-lo, mas sempre (sempre!) em legítima defesa. Ou em duelo provocado pelo "bandido", na rua principal (e única), que começava lá longe, em parte nenhuma, e acabava também longe, no meio dos campos do outro lado. Toda a população assistia ao duelo, escondida nos vãos das portas ou das janelas, com medo dos ricochetes.
Morto o "bandido", que dominava a cidade pelo terror, a população rompia em gritos de alegria, atirando os chapéus ao ar, correndo para o "artista", que, desdenhosamente, montava o cavalo e se afastava sem pressas, contra o sol poente, enquanto a música de fundo seguia em crescendo.

Também a rapaziada que assistia à projecção, saltava das cadeiras e corria em direcção ao "écran", atirando os bonés ao ar. Nesse momento aparecia o "THE END" e ficavam apatetados à espera de mais, com ar desiludido, a olhar os nomes do "cast" que passavam lentamente da parte superior para a parte inferior do "écran", desaparecendo para parte nenhuma.
Acordados para a realidade quando as luzes da sala se acendiam, tinham dois problemas - encontrar oa bonés e encontrar oa pais. Encontrados estes últimos, havia mais gritaria (e choro) como consequência das bofetadas paternas.