" A CORPO INTEIRO
Um silêncio dormente
a corpo inteiro
Com este odor a Verão
desencontrado
Esta chama, estes lábios
e este cheiro
dormindo entre os braços.
Mas primeiro:
Doce bebido de um leite
coalhado"
Maria Teresa Horta
«DESTINO»
QUETZAL EDITORES
Histórias curtas, pequenos comentários, pequenos poemas - meios de libertar "pressão", que passa a ser... "EX-PRESSÃO".
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29 de julho de 2011
CHUVA E NOITE
No espaço citadino abunda solidão
o bicho do cio rói o sexo dos humanos
no espaço do sábado previsível.
Dói esta chuva que cai.
As luzes rompem os pingos da chuva
há metafísicas pelo espaço
a noite arranha ao dobrar de cada esquina.
Dói esta noite que cai.
A noite cai na chuva que ilumina
a sombra dos cabelos o quente do regaço
a água não é água, é sumo de uva
no calor da intimidade apetecida.
A chuva já não dói
e a noite vai.
o bicho do cio rói o sexo dos humanos
no espaço do sábado previsível.
Dói esta chuva que cai.
As luzes rompem os pingos da chuva
há metafísicas pelo espaço
a noite arranha ao dobrar de cada esquina.
Dói esta noite que cai.
A noite cai na chuva que ilumina
a sombra dos cabelos o quente do regaço
a água não é água, é sumo de uva
no calor da intimidade apetecida.
A chuva já não dói
e a noite vai.
26 de julho de 2011
RELATÓRIO DE EMBOSCADA
Noite espessa
que se agarra às carnes
pesada densa
agarrada ao chão.
A alma dissolve-se na chuva
na frialdade da noite
disseca os ruídos da mata
calando os passos do coração.
A imaginação longe longe
e a guerra estúpida tão perto.
que se agarra às carnes
pesada densa
agarrada ao chão.
A alma dissolve-se na chuva
na frialdade da noite
disseca os ruídos da mata
calando os passos do coração.
A imaginação longe longe
e a guerra estúpida tão perto.
24 de julho de 2011
FAZENDO O CAMINHO
Àquele que começa
àquele que não vê
àquele que tropeça
no tropeço de um porquê
àquele que vai sair
à procura de razão
que o ajude a prosseguir
também vou chamar Irmão.
àquele que não vê
àquele que tropeça
no tropeço de um porquê
àquele que vai sair
à procura de razão
que o ajude a prosseguir
também vou chamar Irmão.
22 de julho de 2011
CITAÇÃO XX
"O tombo da Lua
UMA OCASIÃO, quando desapareceu a Lua, eu estava lá e sei contar tudo. Não me lembro da idade que então tinha e já na altura me não lembrava. Certo é que a noite estava muito quente e repassada de azul, assim de tinta - sói dizer-se - e a Lua tinha-se quieta, redonda e branca, brilhante como lhe competia. Provavelmente, o Zé Metade cantava o fado, postado à soleira da porta, enquanto acabava o saquitel de tremoços. O Zé Metade é assim chamado desde que lhe aconteceu aquela infelicidade: quis separar o Manecas Canteiro do Mota Cavaleiro quando eles se envolveram à facada na Esquina dos Eléctricos, por causa de uma questão, segundo uns política, segundo outros de saias. Ambos usavam grandes navalhas sevilhanas e o Zé caiu-lhes mesmo a meio dos volteios. Ali ficou cortado em dois, sem conserto, busto para um lado, o resto para outro. Daí para diante ficou conhecido por Zé Metade, arrasta-se num caixotede madeira com rodinhas e deu-lhe para cantar todas as noites um fado melancólico e muito sentido: Ai a profunda desgraça/Em que me viste ó'nha mãiiii...
Pois nesta altura, com tudo assim quieto e a fazer olho para dormir, que o Andrade da Mula se chegou à janela e disse: «lá a calari...» e depois remirou em volta a ver se alguém lhe ligava, o que não aconteceu.
Após, olhou para o céu e bocejou um desses bocejos do tamanho de uma casa, escancarando muito a bocarra que era considerada uma das mais competitivas da zona oriental. E então aconteceu aquilo da Lua.
Deslocou-se um bocadinho, assim como quem se desequilibrou, entrou a descer devagar, ressaltou numa ponta de nuvem que por aí pairava feita parva, e foi enfiar-se inteirinha na boca do Andrade que só fez «gulp» e esbugalhou os olhos muito. No sítio da Lua, lá no astro, ficou um vinco esbranquiçado como dobra em papel de seda que logo se apagou e o céu tornou-se bem liso e escorreito. O Beco ficou um tudo-nada mais escuro e um gato passou a correr, pardo, da cor dos outros.
Diz o Zé Metade, no fim de uma estrofe:
- Ina cum caraças!
Vai o Andrade lá de cima e atira o maior arroto que jamais se ouviu naquele Beco.
Era o Zé Metade a berrar para dentro: «'nha mãe, venha cá, senhora, co Andrade engoliu a Lua!» e o Andrade a olhar para nós, limpando a boca com as costas da mão, um ar azamboado.
Seguiu-se o alvoroço costumeiro sempre que havia novidade. Ia um corrupio de pessoal na rua a falar alto e um ror de gente em casa do Andrade que estava sentado numa cadeira, pernas muito afastadas, pedindo muita água e queixando-se de que sentia a barriga um bocado pesada.
- Ele não teve culpa, tadinho, que ela é que se lhe veio enfiar pela boca dentro - comentava a mulher do Andrade, torcendo a ponta do avental.
- Mas se foi ele que a desafiou... - gritava a mãe do Zé dando punhadas de uma mão na palma da outra.
- Pôr-se ali na janela aos bocejos, olha a farronca! Agora vem esta a querer baralhar género humano com Manuel Germano. O meu Zé viu tudo, óviste?
Não tardou, estava o presidente da Junta, muito hirto, no seu casaco de pijama com flores:
- Isto o meu amigo o que fazia melhor era regurgitar a Lua, ou o Beco ainda fica mal visto - observou com gravidade e voz de papo.
E o Andrade, moita, ali embasbacado, com os olhos no vago.
Deram-lhe azeite para o homem vomitar, mas nada. Limitou-se a produzir uns sons equívocos e a esboçar um ar de enjoada repugnância.
- O pior é que se ela sai pelo outro lado nos parte a sanita nova - abespinhava-se a filha do Andrade, toda de mão na anca. - Que coisa mais escanifobética...
- É levarem-no para o hospital - gritava o Zé Metade da rua, ansioso por se ver acompanhado na sua desgraça de vítima do escalpelo cirúrgico.
Mas o presidente da Junta considerou: Então e depois a Lua onde é que a punham? Quem lhes garantia que ela voltava ao sítio? E se os médicos quisessem ficar com ela lá no hospital e a prantassem dentro de um frasco com álcool? Que é que aquela gente ganhava com isso? Hã? E em faltando a Lua, quais eram os inconvenientes? Hã?
- Acabam-se as marés - disse o Paulinho Marujo.
- Coisa de pouca monta - afirmou uma mulher. - As marés nunca deram de comer a ninguém. E quanto à luz, depois da electricidade...
- Então como é que o amigo se sente? - perguntava o presidente ao Andrade.
- Menos mal, muito obrigado. Vai um pedacinho melhor...
- Então ficamos antes assim - recomendou o presidente. - Vossemecê agora toma um bicarbonatozinho, um leitinho, e ala para a cama que amanhã é dia de trabalho. E vocês todos, andor, para casa, em ordem, e não se pensa mais em tal semelhante!
E assim foram fazendo, aos poucos e poucos.
No dia seguinte, a Humanidade toda estranhou muito o desaparecimnto da Lua e deu-se a grandes especulações.
Ea com orgulho que a população do Beco via passar o Andrade. Sempre gaiteiro, apenas um pouco mais gordo."
Mário de Carvalho
«Casos do Beco das Sardinheiras»
Editorial CAMINHO
UMA OCASIÃO, quando desapareceu a Lua, eu estava lá e sei contar tudo. Não me lembro da idade que então tinha e já na altura me não lembrava. Certo é que a noite estava muito quente e repassada de azul, assim de tinta - sói dizer-se - e a Lua tinha-se quieta, redonda e branca, brilhante como lhe competia. Provavelmente, o Zé Metade cantava o fado, postado à soleira da porta, enquanto acabava o saquitel de tremoços. O Zé Metade é assim chamado desde que lhe aconteceu aquela infelicidade: quis separar o Manecas Canteiro do Mota Cavaleiro quando eles se envolveram à facada na Esquina dos Eléctricos, por causa de uma questão, segundo uns política, segundo outros de saias. Ambos usavam grandes navalhas sevilhanas e o Zé caiu-lhes mesmo a meio dos volteios. Ali ficou cortado em dois, sem conserto, busto para um lado, o resto para outro. Daí para diante ficou conhecido por Zé Metade, arrasta-se num caixotede madeira com rodinhas e deu-lhe para cantar todas as noites um fado melancólico e muito sentido: Ai a profunda desgraça/Em que me viste ó'nha mãiiii...
Pois nesta altura, com tudo assim quieto e a fazer olho para dormir, que o Andrade da Mula se chegou à janela e disse: «lá a calari...» e depois remirou em volta a ver se alguém lhe ligava, o que não aconteceu.
Após, olhou para o céu e bocejou um desses bocejos do tamanho de uma casa, escancarando muito a bocarra que era considerada uma das mais competitivas da zona oriental. E então aconteceu aquilo da Lua.
Deslocou-se um bocadinho, assim como quem se desequilibrou, entrou a descer devagar, ressaltou numa ponta de nuvem que por aí pairava feita parva, e foi enfiar-se inteirinha na boca do Andrade que só fez «gulp» e esbugalhou os olhos muito. No sítio da Lua, lá no astro, ficou um vinco esbranquiçado como dobra em papel de seda que logo se apagou e o céu tornou-se bem liso e escorreito. O Beco ficou um tudo-nada mais escuro e um gato passou a correr, pardo, da cor dos outros.
Diz o Zé Metade, no fim de uma estrofe:
- Ina cum caraças!
Vai o Andrade lá de cima e atira o maior arroto que jamais se ouviu naquele Beco.
Era o Zé Metade a berrar para dentro: «'nha mãe, venha cá, senhora, co Andrade engoliu a Lua!» e o Andrade a olhar para nós, limpando a boca com as costas da mão, um ar azamboado.
Seguiu-se o alvoroço costumeiro sempre que havia novidade. Ia um corrupio de pessoal na rua a falar alto e um ror de gente em casa do Andrade que estava sentado numa cadeira, pernas muito afastadas, pedindo muita água e queixando-se de que sentia a barriga um bocado pesada.
- Ele não teve culpa, tadinho, que ela é que se lhe veio enfiar pela boca dentro - comentava a mulher do Andrade, torcendo a ponta do avental.
- Mas se foi ele que a desafiou... - gritava a mãe do Zé dando punhadas de uma mão na palma da outra.
- Pôr-se ali na janela aos bocejos, olha a farronca! Agora vem esta a querer baralhar género humano com Manuel Germano. O meu Zé viu tudo, óviste?
Não tardou, estava o presidente da Junta, muito hirto, no seu casaco de pijama com flores:
- Isto o meu amigo o que fazia melhor era regurgitar a Lua, ou o Beco ainda fica mal visto - observou com gravidade e voz de papo.
E o Andrade, moita, ali embasbacado, com os olhos no vago.
Deram-lhe azeite para o homem vomitar, mas nada. Limitou-se a produzir uns sons equívocos e a esboçar um ar de enjoada repugnância.
- O pior é que se ela sai pelo outro lado nos parte a sanita nova - abespinhava-se a filha do Andrade, toda de mão na anca. - Que coisa mais escanifobética...
- É levarem-no para o hospital - gritava o Zé Metade da rua, ansioso por se ver acompanhado na sua desgraça de vítima do escalpelo cirúrgico.
Mas o presidente da Junta considerou: Então e depois a Lua onde é que a punham? Quem lhes garantia que ela voltava ao sítio? E se os médicos quisessem ficar com ela lá no hospital e a prantassem dentro de um frasco com álcool? Que é que aquela gente ganhava com isso? Hã? E em faltando a Lua, quais eram os inconvenientes? Hã?
- Acabam-se as marés - disse o Paulinho Marujo.
- Coisa de pouca monta - afirmou uma mulher. - As marés nunca deram de comer a ninguém. E quanto à luz, depois da electricidade...
- Então como é que o amigo se sente? - perguntava o presidente ao Andrade.
- Menos mal, muito obrigado. Vai um pedacinho melhor...
- Então ficamos antes assim - recomendou o presidente. - Vossemecê agora toma um bicarbonatozinho, um leitinho, e ala para a cama que amanhã é dia de trabalho. E vocês todos, andor, para casa, em ordem, e não se pensa mais em tal semelhante!
E assim foram fazendo, aos poucos e poucos.
No dia seguinte, a Humanidade toda estranhou muito o desaparecimnto da Lua e deu-se a grandes especulações.
Ea com orgulho que a população do Beco via passar o Andrade. Sempre gaiteiro, apenas um pouco mais gordo."
Mário de Carvalho
«Casos do Beco das Sardinheiras»
Editorial CAMINHO
20 de julho de 2011
ANTI-MIDAS
Em tudo na vida
esteve sempre de passagem
mas muito muito ficou.
Sente-se encurralado
entre ser ele e não-sei-quê.
Não quer partir
e tem medo de ficar
porque tudo em que toca se torna vulgar.
esteve sempre de passagem
mas muito muito ficou.
Sente-se encurralado
entre ser ele e não-sei-quê.
Não quer partir
e tem medo de ficar
porque tudo em que toca se torna vulgar.
16 de julho de 2011
CHORAR POR QUEM ?
Foi quando a urna começou a descer ao fundo da sepultura, sustentada por duas cordas grossas, fortes e sujas, que lhe rompeu do peito um choro convulso, em estremeções que lhe faziam abanar o corpo todo. Por mais que tentasse abafar o choro com um lenço, não conseguia.
Tentou afastar-se apressadamente, enterrou os sapatos na terra removida e caiu, ficando sentado no mármore de uma campa próxima. Levantou-se, trôpego.
O choro continuava em arrancos violentos, as lágrimas caíam descontroladamente e começava a escorrer-lhe uma baba espessa de um canto da boca.
Sentia-se envergonhado pela cena que estava fazendo, mas não consegia controlar-se. Tentaram ajudá-lo, consolá-lo da morte do amigo. Havia quem estranhasse tanto sentimento, pois a ligação ao falecido não era tão próxima que justificasse tanto sentimento. Afastou, até, com agressividade os que tentaram ajudá-lo.
Tirou mais um lenço dos bolsos, limpou mais uma vez os olhos e nariz.
Sustido o choro, parecia-lhe ter acordado de um pesadelo. Olhou em volta e fixou os que o observavam. Apertou os botões do casaco, enquanto olhava a viúva, que se afastava, amparada por famaliares.
Encaminhou-se para a porta do cemitério, incomodado, envergonhado, um tanto confuso.
Com dificuldade, conseguiu entrar no carro. Ficou imóvel, a olhar em frente, no vazio, por algum tempo. Dos conhecidos, que iam passando, ninguém o incomodou.
Pôs o carro em marcha depois de ter tomado consciência que não tinha chorado pelo falecido. Tinha, afinal, chorado por si próprio. Perecível e transitório.
Tentou afastar-se apressadamente, enterrou os sapatos na terra removida e caiu, ficando sentado no mármore de uma campa próxima. Levantou-se, trôpego.
O choro continuava em arrancos violentos, as lágrimas caíam descontroladamente e começava a escorrer-lhe uma baba espessa de um canto da boca.
Sentia-se envergonhado pela cena que estava fazendo, mas não consegia controlar-se. Tentaram ajudá-lo, consolá-lo da morte do amigo. Havia quem estranhasse tanto sentimento, pois a ligação ao falecido não era tão próxima que justificasse tanto sentimento. Afastou, até, com agressividade os que tentaram ajudá-lo.
Tirou mais um lenço dos bolsos, limpou mais uma vez os olhos e nariz.
Sustido o choro, parecia-lhe ter acordado de um pesadelo. Olhou em volta e fixou os que o observavam. Apertou os botões do casaco, enquanto olhava a viúva, que se afastava, amparada por famaliares.
Encaminhou-se para a porta do cemitério, incomodado, envergonhado, um tanto confuso.
Com dificuldade, conseguiu entrar no carro. Ficou imóvel, a olhar em frente, no vazio, por algum tempo. Dos conhecidos, que iam passando, ninguém o incomodou.
Pôs o carro em marcha depois de ter tomado consciência que não tinha chorado pelo falecido. Tinha, afinal, chorado por si próprio. Perecível e transitório.
15 de julho de 2011
... DA INFÂNCIA
Vem da infância
um cheiro a tangerinas
um gosto a amoras
som de sino de igreja
o ladrar de um cão
contos de bruxas
cheiro a incenso
sons de avé-marias
cheiro a mosto
canções de entardecer
alegria de cerejas
...e o peito fica cheio
como um balão azul.
um cheiro a tangerinas
um gosto a amoras
som de sino de igreja
o ladrar de um cão
contos de bruxas
cheiro a incenso
sons de avé-marias
cheiro a mosto
canções de entardecer
alegria de cerejas
...e o peito fica cheio
como um balão azul.
12 de julho de 2011
AS ÁRVORES NÃO CAEM
A casa manteve-se fechada durante os quatro meses que o dono esteve internado no hospital.
A bicharada, principalmente aranhas de toda a espécie, tomou a casa como sua, lenta e continuamente. Ocuparam a soleira da porta, todos os cantos e recantos: junto aos buracos das madeiras e janelas e em todos os lugares por onde passasse uma réstea de luz. Teceram as teias concêntricas em tecidura de artista ou em simples emaranhados de fios e babas. O vão da chaminé foi, especialmente disputado, milímetro a milímetro, devido à luminosidade do meio do dia.
Os pardais ocuparam ainda mais espaço entre as telhas e o tabuado já decrépito, deixando o chão da casa, de terra batida, inundado de de caganitas, mesmo por baixo dos ninhos.
Os ratos instalaram-se no canto da parede por baixo da cama, roeram o colchão de folhelho e fizeram criação na cabeceira, encostada à parede.
No exterior da casa, a erva aproveitou a ausência de vida humana para ocupar todo o quintal, incluindo o terreno entre o portão e a casa, tomou conta da horta e do pomar, abafou as couves e outras hortaliças e trepou quase à altura dos muros, já meio destruidos.
Uma ambulância chegou e parou junto ao portão. Um homem idoso foi ajudado pelos bombeiros a sair. Caminhando em passos miudos e lentos, arrastava dois sacos de pano, encaminhando-se para o portão.
- Vossemecê tem aí a chave?
O vehote encostou-se ao muro, vasculhou dentro de um dos sacos e retirou uma chave grande de ferro, do tamanho de uma mão.
- Vossemecê agora tome cuidado, não vá cair e partir a outra perna.
Amparado por um dos bombeiros, passou o portão. Triste, olhou em volta. Fixou as macieiras e o pessegueiro e pensou: "As árvores não caem, as árvores não caem..."
O bombeiro tentou abrir a porta da casa e não conseguiu. Foi à ambulância e trouxe óleo e um pé-de-cabra. A fechadura, mesmo depois de oleada, protestou, rangeu, mas a lingueta acabou por deslizar. O bombeiro, já na soleira, dirigiu-se ao velhote, que continuava amparado ao portão, a olhar o pomar:
- Ó ti Manel, vossemacê tem que mandar limpar isto
- Pois.
Suspirou. Tentou andar, arrastando os sacos. Quase caiu, mas o outro bombeiro amparou-o e agarrou um dos sacos. Olhou fixamente o pessegueiro e disse baixinho: - As árvores não caem.
- Vossemecê deixe-se estar aqui sentado, que a gente vai lá baixo à Junta para ver se mandam alguém para o ajudar. Vossemecê quer que a gente compre alguma coisa? Pão, chouriça... vinho?
- Pode ser.
Meteu a mão num bolso do casaco e tirou umas moedas, que entregou ao bombeiro.
Entrou na casa, vagarosamente, amparando-se à parede. Sentou-se num banco que estava próximo da porta.
- A gente volta já.
Ficou a olhar a casa, em volta. As lágrimas encheram-lhe os olhos. Quando os fechou e baixou a cabeça, as lágrimas escorreram pela cara e caíram no pó do chão.
Alguns dias depois, quando as duas mulheres do serviço social da Câmara Municipal chegaram à casa a meio da manhã, como habitualmente, encontraram-no inconsciente, atado ao pessegueiro com uma corda grossa mesmo por baixo dos braços, descalço e com os pés dentro de terra molhada. Ao pé estava uma enxada e um balde de zinco, tombado e com um resto de água.
Morreu dois dias depois numa maca do hospital. Deitado... caído.
A bicharada, principalmente aranhas de toda a espécie, tomou a casa como sua, lenta e continuamente. Ocuparam a soleira da porta, todos os cantos e recantos: junto aos buracos das madeiras e janelas e em todos os lugares por onde passasse uma réstea de luz. Teceram as teias concêntricas em tecidura de artista ou em simples emaranhados de fios e babas. O vão da chaminé foi, especialmente disputado, milímetro a milímetro, devido à luminosidade do meio do dia.
Os pardais ocuparam ainda mais espaço entre as telhas e o tabuado já decrépito, deixando o chão da casa, de terra batida, inundado de de caganitas, mesmo por baixo dos ninhos.
Os ratos instalaram-se no canto da parede por baixo da cama, roeram o colchão de folhelho e fizeram criação na cabeceira, encostada à parede.
No exterior da casa, a erva aproveitou a ausência de vida humana para ocupar todo o quintal, incluindo o terreno entre o portão e a casa, tomou conta da horta e do pomar, abafou as couves e outras hortaliças e trepou quase à altura dos muros, já meio destruidos.
Uma ambulância chegou e parou junto ao portão. Um homem idoso foi ajudado pelos bombeiros a sair. Caminhando em passos miudos e lentos, arrastava dois sacos de pano, encaminhando-se para o portão.
- Vossemecê tem aí a chave?
O vehote encostou-se ao muro, vasculhou dentro de um dos sacos e retirou uma chave grande de ferro, do tamanho de uma mão.
- Vossemecê agora tome cuidado, não vá cair e partir a outra perna.
Amparado por um dos bombeiros, passou o portão. Triste, olhou em volta. Fixou as macieiras e o pessegueiro e pensou: "As árvores não caem, as árvores não caem..."
O bombeiro tentou abrir a porta da casa e não conseguiu. Foi à ambulância e trouxe óleo e um pé-de-cabra. A fechadura, mesmo depois de oleada, protestou, rangeu, mas a lingueta acabou por deslizar. O bombeiro, já na soleira, dirigiu-se ao velhote, que continuava amparado ao portão, a olhar o pomar:
- Ó ti Manel, vossemacê tem que mandar limpar isto
- Pois.
Suspirou. Tentou andar, arrastando os sacos. Quase caiu, mas o outro bombeiro amparou-o e agarrou um dos sacos. Olhou fixamente o pessegueiro e disse baixinho: - As árvores não caem.
- Vossemecê deixe-se estar aqui sentado, que a gente vai lá baixo à Junta para ver se mandam alguém para o ajudar. Vossemecê quer que a gente compre alguma coisa? Pão, chouriça... vinho?
- Pode ser.
Meteu a mão num bolso do casaco e tirou umas moedas, que entregou ao bombeiro.
Entrou na casa, vagarosamente, amparando-se à parede. Sentou-se num banco que estava próximo da porta.
- A gente volta já.
Ficou a olhar a casa, em volta. As lágrimas encheram-lhe os olhos. Quando os fechou e baixou a cabeça, as lágrimas escorreram pela cara e caíram no pó do chão.
Alguns dias depois, quando as duas mulheres do serviço social da Câmara Municipal chegaram à casa a meio da manhã, como habitualmente, encontraram-no inconsciente, atado ao pessegueiro com uma corda grossa mesmo por baixo dos braços, descalço e com os pés dentro de terra molhada. Ao pé estava uma enxada e um balde de zinco, tombado e com um resto de água.
Morreu dois dias depois numa maca do hospital. Deitado... caído.
10 de julho de 2011
CITAÇÃO XIX
" Juiz de instrução criminal
O "Mundo" publicou, ha dias, a contestação que Affonso Costa lançou no processo que contra França Borges moveu o delegado do segundo districto criminal.
É uma peça cheia de vigor, onde se admira a tactica juridica, a força de argumentação e a audacia do ponto de vista. A muita gente parecerá forte de mais, mas a verdade foi sempre forte, e ai d'ella se algum dia fraqueja porque a fraqueza da verdade é já a mentira.
Como facilmente se vê, aquelle trabalho não é completo. É um esboço a pinceladas largas e firmes, que será completado no dia da audiencia pela argumentação do advogado e pela eloquencia do tribuno.
Aquela contestação, seguida da reproducção do discurso que Affonso Costa ha de proferir na Boa Hora, constituirá a biographia mental do juiz de instrucção. É um capitulo de pathologia que fica traçado, é uma história clinica que se levanta e, em face da qual, nós vemos que, se para salvar o paiz é preciso todo o povo armado em insurreição, para certos casos particulares apenas se reclama o Dr. Bombarda e um colete de forças."
in: "ALMA NACIONAL"
Numero 2 - LISBOA, 17 de Fevereiro de 1910 (pág.27)
Director: António José d'Almeida
O "Mundo" publicou, ha dias, a contestação que Affonso Costa lançou no processo que contra França Borges moveu o delegado do segundo districto criminal.
É uma peça cheia de vigor, onde se admira a tactica juridica, a força de argumentação e a audacia do ponto de vista. A muita gente parecerá forte de mais, mas a verdade foi sempre forte, e ai d'ella se algum dia fraqueja porque a fraqueza da verdade é já a mentira.
Como facilmente se vê, aquelle trabalho não é completo. É um esboço a pinceladas largas e firmes, que será completado no dia da audiencia pela argumentação do advogado e pela eloquencia do tribuno.
Aquela contestação, seguida da reproducção do discurso que Affonso Costa ha de proferir na Boa Hora, constituirá a biographia mental do juiz de instrucção. É um capitulo de pathologia que fica traçado, é uma história clinica que se levanta e, em face da qual, nós vemos que, se para salvar o paiz é preciso todo o povo armado em insurreição, para certos casos particulares apenas se reclama o Dr. Bombarda e um colete de forças."
in: "ALMA NACIONAL"
Numero 2 - LISBOA, 17 de Fevereiro de 1910 (pág.27)
Director: António José d'Almeida
7 de julho de 2011
CITAÇÃO XVIII
" Caça aos republicanos
Tem sido furiosa a batida aos homens suspeitos de pertencerem a associações secretas.
É estupendo o que se tem passado e mais extraordinario ainda que uma cidade como Lisboa consinta os seus destinos à mercê do Juiz de instrução criminal e do agente Branco, os dois protagonistas do baixo drama que se tem representado nos aljubes da policia.
O juiz é um possesso furibundo que chega a perder a responsabilidade contorcido nas espiraes da sua allucinação. O agente Branco é uma creatura sinistra, operando a frio, exercendo com calma e com methodo a perseguição, a tortura, o embuste e o ardil.
Da combinação dos dois resulta a alliança tragica da perfidia e do mal. Só com uma diferença: o agente é esperto com a finura calculada dos criminosos e o juiz é impetuoso, com a impetuosidade cega dos desequilibrados.
Tanto peior.
O agente, que é subalterno, prepara com habilidade e proficiencia a tenaz em que a vitima ha de espernear. O juiz furioso, derrancado, com um velo de sangue a empanar-lhe os olhos, aperta o instrumento e executa a tortura.
E é com estas duas figuras que se conta para arranjar victimas que desempenhem o papel de regicidas!
...Ora, na verdade não se sabe onde a loucura é maior, se no paço, no ministério, ou no juizo de instrução criminal..."
"Opiniões e depoimentos"
In: "ALMA NACIONAL"-Numero 1 / Lisboa, 10 de Fevereiro de 1910
Director: António José d'Almeida
Tem sido furiosa a batida aos homens suspeitos de pertencerem a associações secretas.
É estupendo o que se tem passado e mais extraordinario ainda que uma cidade como Lisboa consinta os seus destinos à mercê do Juiz de instrução criminal e do agente Branco, os dois protagonistas do baixo drama que se tem representado nos aljubes da policia.
O juiz é um possesso furibundo que chega a perder a responsabilidade contorcido nas espiraes da sua allucinação. O agente Branco é uma creatura sinistra, operando a frio, exercendo com calma e com methodo a perseguição, a tortura, o embuste e o ardil.
Da combinação dos dois resulta a alliança tragica da perfidia e do mal. Só com uma diferença: o agente é esperto com a finura calculada dos criminosos e o juiz é impetuoso, com a impetuosidade cega dos desequilibrados.
Tanto peior.
O agente, que é subalterno, prepara com habilidade e proficiencia a tenaz em que a vitima ha de espernear. O juiz furioso, derrancado, com um velo de sangue a empanar-lhe os olhos, aperta o instrumento e executa a tortura.
E é com estas duas figuras que se conta para arranjar victimas que desempenhem o papel de regicidas!
...Ora, na verdade não se sabe onde a loucura é maior, se no paço, no ministério, ou no juizo de instrução criminal..."
"Opiniões e depoimentos"
In: "ALMA NACIONAL"-Numero 1 / Lisboa, 10 de Fevereiro de 1910
Director: António José d'Almeida
5 de julho de 2011
LINGUAGENS
- Como entendo que o réu vai decair na acção, os preparos e custas serão, a final, da sua responsabilidade, para além da possivel condenação no pagamento de honorários. Esses valores serão agravados no caso de haver réplica e tréplica e, mais ainda, se o processo tiver que prosseguir para audiência de discussão e julgamento, o que parece será o caso, pois a matéria é complexa para poder ser decidida no despacho saneador.
O cliente, habitual ledor do "Diário da República", perguntou:
- O Dr. importa-se de me fazer um "Resumo em linguagem clara" ou um "Summary in plain english" ?
O cliente, habitual ledor do "Diário da República", perguntou:
- O Dr. importa-se de me fazer um "Resumo em linguagem clara" ou um "Summary in plain english" ?
3 de julho de 2011
CABEÇA / CORAÇÃO
Tanto para comunicar
mas tanto a impedir
que atrasa
amassa
enleia
confunde
ultrapassa
arremeda
e trapaceia
que já quase não confio
cabeça cheia
coração vazio.
mas tanto a impedir
que atrasa
amassa
enleia
confunde
ultrapassa
arremeda
e trapaceia
que já quase não confio
cabeça cheia
coração vazio.
1 de julho de 2011
RELATIVIDADE ?
Tem dias que parecem ter muito mais que 24 horas e outros em que anoitece logo a seguir ao nascer do sol.
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