A casa manteve-se fechada durante os quatro meses que o dono esteve internado no hospital.
A bicharada, principalmente aranhas de toda a espécie, tomou a casa como sua, lenta e continuamente. Ocuparam a soleira da porta, todos os cantos e recantos: junto aos buracos das madeiras e janelas e em todos os lugares por onde passasse uma réstea de luz. Teceram as teias concêntricas em tecidura de artista ou em simples emaranhados de fios e babas. O vão da chaminé foi, especialmente disputado, milímetro a milímetro, devido à luminosidade do meio do dia.
Os pardais ocuparam ainda mais espaço entre as telhas e o tabuado já decrépito, deixando o chão da casa, de terra batida, inundado de de caganitas, mesmo por baixo dos ninhos.
Os ratos instalaram-se no canto da parede por baixo da cama, roeram o colchão de folhelho e fizeram criação na cabeceira, encostada à parede.
No exterior da casa, a erva aproveitou a ausência de vida humana para ocupar todo o quintal, incluindo o terreno entre o portão e a casa, tomou conta da horta e do pomar, abafou as couves e outras hortaliças e trepou quase à altura dos muros, já meio destruidos.
Uma ambulância chegou e parou junto ao portão. Um homem idoso foi ajudado pelos bombeiros a sair. Caminhando em passos miudos e lentos, arrastava dois sacos de pano, encaminhando-se para o portão.
- Vossemecê tem aí a chave?
O vehote encostou-se ao muro, vasculhou dentro de um dos sacos e retirou uma chave grande de ferro, do tamanho de uma mão.
- Vossemecê agora tome cuidado, não vá cair e partir a outra perna.
Amparado por um dos bombeiros, passou o portão. Triste, olhou em volta. Fixou as macieiras e o pessegueiro e pensou: "As árvores não caem, as árvores não caem..."
O bombeiro tentou abrir a porta da casa e não conseguiu. Foi à ambulância e trouxe óleo e um pé-de-cabra. A fechadura, mesmo depois de oleada, protestou, rangeu, mas a lingueta acabou por deslizar. O bombeiro, já na soleira, dirigiu-se ao velhote, que continuava amparado ao portão, a olhar o pomar:
- Ó ti Manel, vossemacê tem que mandar limpar isto
- Pois.
Suspirou. Tentou andar, arrastando os sacos. Quase caiu, mas o outro bombeiro amparou-o e agarrou um dos sacos. Olhou fixamente o pessegueiro e disse baixinho: - As árvores não caem.
- Vossemecê deixe-se estar aqui sentado, que a gente vai lá baixo à Junta para ver se mandam alguém para o ajudar. Vossemecê quer que a gente compre alguma coisa? Pão, chouriça... vinho?
- Pode ser.
Meteu a mão num bolso do casaco e tirou umas moedas, que entregou ao bombeiro.
Entrou na casa, vagarosamente, amparando-se à parede. Sentou-se num banco que estava próximo da porta.
- A gente volta já.
Ficou a olhar a casa, em volta. As lágrimas encheram-lhe os olhos. Quando os fechou e baixou a cabeça, as lágrimas escorreram pela cara e caíram no pó do chão.
Alguns dias depois, quando as duas mulheres do serviço social da Câmara Municipal chegaram à casa a meio da manhã, como habitualmente, encontraram-no inconsciente, atado ao pessegueiro com uma corda grossa mesmo por baixo dos braços, descalço e com os pés dentro de terra molhada. Ao pé estava uma enxada e um balde de zinco, tombado e com um resto de água.
Morreu dois dias depois numa maca do hospital. Deitado... caído.
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