"O tombo da Lua
UMA OCASIÃO, quando desapareceu a Lua, eu estava lá e sei contar tudo. Não me lembro da idade que então tinha e já na altura me não lembrava. Certo é que a noite estava muito quente e repassada de azul, assim de tinta - sói dizer-se - e a Lua tinha-se quieta, redonda e branca, brilhante como lhe competia. Provavelmente, o Zé Metade cantava o fado, postado à soleira da porta, enquanto acabava o saquitel de tremoços. O Zé Metade é assim chamado desde que lhe aconteceu aquela infelicidade: quis separar o Manecas Canteiro do Mota Cavaleiro quando eles se envolveram à facada na Esquina dos Eléctricos, por causa de uma questão, segundo uns política, segundo outros de saias. Ambos usavam grandes navalhas sevilhanas e o Zé caiu-lhes mesmo a meio dos volteios. Ali ficou cortado em dois, sem conserto, busto para um lado, o resto para outro. Daí para diante ficou conhecido por Zé Metade, arrasta-se num caixotede madeira com rodinhas e deu-lhe para cantar todas as noites um fado melancólico e muito sentido: Ai a profunda desgraça/Em que me viste ó'nha mãiiii...
Pois nesta altura, com tudo assim quieto e a fazer olho para dormir, que o Andrade da Mula se chegou à janela e disse: «lá a calari...» e depois remirou em volta a ver se alguém lhe ligava, o que não aconteceu.
Após, olhou para o céu e bocejou um desses bocejos do tamanho de uma casa, escancarando muito a bocarra que era considerada uma das mais competitivas da zona oriental. E então aconteceu aquilo da Lua.
Deslocou-se um bocadinho, assim como quem se desequilibrou, entrou a descer devagar, ressaltou numa ponta de nuvem que por aí pairava feita parva, e foi enfiar-se inteirinha na boca do Andrade que só fez «gulp» e esbugalhou os olhos muito. No sítio da Lua, lá no astro, ficou um vinco esbranquiçado como dobra em papel de seda que logo se apagou e o céu tornou-se bem liso e escorreito. O Beco ficou um tudo-nada mais escuro e um gato passou a correr, pardo, da cor dos outros.
Diz o Zé Metade, no fim de uma estrofe:
- Ina cum caraças!
Vai o Andrade lá de cima e atira o maior arroto que jamais se ouviu naquele Beco.
Era o Zé Metade a berrar para dentro: «'nha mãe, venha cá, senhora, co Andrade engoliu a Lua!» e o Andrade a olhar para nós, limpando a boca com as costas da mão, um ar azamboado.
Seguiu-se o alvoroço costumeiro sempre que havia novidade. Ia um corrupio de pessoal na rua a falar alto e um ror de gente em casa do Andrade que estava sentado numa cadeira, pernas muito afastadas, pedindo muita água e queixando-se de que sentia a barriga um bocado pesada.
- Ele não teve culpa, tadinho, que ela é que se lhe veio enfiar pela boca dentro - comentava a mulher do Andrade, torcendo a ponta do avental.
- Mas se foi ele que a desafiou... - gritava a mãe do Zé dando punhadas de uma mão na palma da outra.
- Pôr-se ali na janela aos bocejos, olha a farronca! Agora vem esta a querer baralhar género humano com Manuel Germano. O meu Zé viu tudo, óviste?
Não tardou, estava o presidente da Junta, muito hirto, no seu casaco de pijama com flores:
- Isto o meu amigo o que fazia melhor era regurgitar a Lua, ou o Beco ainda fica mal visto - observou com gravidade e voz de papo.
E o Andrade, moita, ali embasbacado, com os olhos no vago.
Deram-lhe azeite para o homem vomitar, mas nada. Limitou-se a produzir uns sons equívocos e a esboçar um ar de enjoada repugnância.
- O pior é que se ela sai pelo outro lado nos parte a sanita nova - abespinhava-se a filha do Andrade, toda de mão na anca. - Que coisa mais escanifobética...
- É levarem-no para o hospital - gritava o Zé Metade da rua, ansioso por se ver acompanhado na sua desgraça de vítima do escalpelo cirúrgico.
Mas o presidente da Junta considerou: Então e depois a Lua onde é que a punham? Quem lhes garantia que ela voltava ao sítio? E se os médicos quisessem ficar com ela lá no hospital e a prantassem dentro de um frasco com álcool? Que é que aquela gente ganhava com isso? Hã? E em faltando a Lua, quais eram os inconvenientes? Hã?
- Acabam-se as marés - disse o Paulinho Marujo.
- Coisa de pouca monta - afirmou uma mulher. - As marés nunca deram de comer a ninguém. E quanto à luz, depois da electricidade...
- Então como é que o amigo se sente? - perguntava o presidente ao Andrade.
- Menos mal, muito obrigado. Vai um pedacinho melhor...
- Então ficamos antes assim - recomendou o presidente. - Vossemecê agora toma um bicarbonatozinho, um leitinho, e ala para a cama que amanhã é dia de trabalho. E vocês todos, andor, para casa, em ordem, e não se pensa mais em tal semelhante!
E assim foram fazendo, aos poucos e poucos.
No dia seguinte, a Humanidade toda estranhou muito o desaparecimnto da Lua e deu-se a grandes especulações.
Ea com orgulho que a população do Beco via passar o Andrade. Sempre gaiteiro, apenas um pouco mais gordo."
Mário de Carvalho
«Casos do Beco das Sardinheiras»
Editorial CAMINHO
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