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14 de outubro de 2011

OS "CAIXOTES DOS RETORNADOS" (1975)

Todos os que residiam ou passaram por Lisboa e observaram a zona ribeirinha durante o final de 1975 e em 1976, viram os "chamados "caixotes dos retornados" de Angola, colocados nas margens do rio Tejo, em terrenos do Porto de Lisboa. Foram diminuido de número ao longo do tempo, mas muitos por ali permaneceram, adivinhando-se a sua deterioração.

O DRAMA que esteve na origem da construção desses caixotes era tenuamente apercebido pelo cidadão comum que os observava de longe.

Ora, o texto abaixo transcrito do livro "S.O.S. ANGOLA" (págs. 156 e 157) de Rita Garcia, editado pela Oficina do Livro (Setembro de 2011), dá-nos, agora, o "filme" da construção desses caixotes e do desespero de quem se via obrigado a partir. (Convirá lembrar, no entanto, que a grande maioria dos chamados "retornados" viajaram/fugiram para Lisboa sem terem tempo para empacotar sequer os bens valiosos ou os que lhes eram afectivamente mais caros).

As partes do texto abaixo transcrito que se encontram entre aspas são, pela autora, identificados com transcrições do "Jornal de Angola".

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«No Verão de 1975, os habitantes de Luanda andavam numa azáfama a construir caiotes de contraplacado. Os "carpinteiros de última hora" a que se referia o "Jornal de Angola" trocavam dicas uns com os outros e aprendiam como fazer contentores de madeira suficientemente robustos para atravessarem o Atlântico. Os mais habilidosos pegavam em serrotes, martelos e pregos - cujo preço subira em consequência do aumento da procura -, e punham eles mesmos mãos à obra. Montavam caixotes que mais pareciam casas e arrumavam lá tudo, "da geleira ao fogão, passando pelo mais simples tareco". Os outros ficavam à mercê do ""Zé Oportunista" (...) que explorava o vizinho, o amigo deste e daquele", cobrando o que queria pelo serviço. Nos quintais ou em plena rua, o barulho dos martelos estendia-se até altas horas da madrugada e só cessava quando o trabalho estava pronto.
No meio da cidade de betão, Ryszard Kapusciuski viu surgir uma outra cidade, de madeira, que espelhava, tão bem como as casas, as diferenças de estatuto social dos proprietários. As famílias mais endinheiradas tinham contentores maiores e de melhor qualidade, com tamanho suficiente para arrumar o conteúdo de salas, quartos e cozinhas, incluindo sofás, roupeiros, mesas, frigoríficos, cómodas, fotografias de casamentos e das principais etapas da vida dos filhos, cadeiras de braços, tapeçarias, vasos e até flores artificiais. Os mais pobres aproveitavam os materiais que apanhavam para fazer os seus caixotes e punham lá dentro o que coubesse.
Havia quem construísse os contentores durante o dia, mas todos esperavam pela noite para os encher. Como o mais provável era que os caixotes ali ficassem algum tempo depois de os donos deixarem Angola, o melhor era que ninguém visse o que lá estava dentro para evitar que fosse alvo de assalto.
À medida que os colonos foram partindo para Lisboa, as ruas perderam vida e restou apenas o silêncio e o cheiro da cidade de madeira.
Durante muito tempo foi assim, até que os camiões começaram a levar tudo para o porto, quarteirão a quarteirão, e Luanda ficou livre da última ocupação portuguesa.»

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